Conseguira notar particularidades interessantes naquele trajeto, com pouco tempo, até aprendera a gostar deles. Restos pouco cuidados da arquitetura do século passado, ruínas arquitetônicas mal amparadas pelo poder público, uma fonte que seria parte de um museu existente ali e solenemente ignorado ela comunidade, agora tomada pelo lixo urbano. Todo esse caos me levava a pensar no descaso pela cultura e pela memória de meu povo.

Quando iniciava a subida da ladeira ladeada pelo muro do museu, sempre parava no primeiro arabesco em forma de cabeça de leões, dessas que sempre aparecem em fontes antigas, e cismava: “por que as faziam assim”? Grandes olhos ocos olhando por acima de minha cabeça, direcionados a lugar nenhum. A pequena juba como em chamas e a boca aberta como se fosse expelir algo. Olhava a primeira, e era como se ela se repetisse por todo o trajeto. Sozinha, poderia transmitir espanto, estupefação (pelo menos em mim!). O conjunto das vinte e tantas cabeças enfileiradas no muro, chegando ao topo da ladeira, ia, aos pouquinhos, me enchendo de expectativa. Quem sabe antes de chegar lá em cima não sou borrifado por um jato d’água vindo de uma delas? Nunca aconteceu! Eu sempre sorria, diante da minha expectativa não realizada. Uma coisa infantil, mas que eu curtia!

Cheguei ao topo mais ofegante que de costume. Talvez devido a isso tropecei numa pedra, e, de pronto me preocupei com o tênis de caminhada, presente de meu filho, que já havia conhecido melhores dias. Abaixei-me para uma olhadela rápida notando um pequeno rasgo no bico, e, quando levantei a cabeça, o cenário havia mudado drasticamente! Onde foram parar as pessoas que faziam fila frente ao hospital no topo da ladeira, os taxistas, ambulantes, os pedintes e os dois policiais que tiravam serviço ali? Diante de mim uma imensa encruzilhada! Fiquei ainda mais ofegante, e senti necessidade de agachar. Retomei ar, penosamente e olhei para adiante. Eu estava num dos braços da encruzilhada. Partindo donde me encontrava, há coisa de 20 metros, o centro da encruzilhada. Havia alguma coisa lá! Respirei fundo, e levantei-me. Apurei a vista! Levei algum tempo olhando atentamente, sem, contudo, ter certeza do que seria aquele vulto. Logo, me dei conta que era uma figura feminina. Mas que não se definia. Num momento era baixinha, rotunda, com um sorriso doce nos lábios e parecia querer me afagar carinhosamente. No outro, era uma senhora elegante, de porte altivo calçada em scarpins e com um sorriso sarcástico emoldurando dois belos olhos claros, que pareciam dizer: “viu? Não lhe falei?”. Enfim, a terceira mulher era uma figura encarquilhada, pequena e curvada, parecendo carregar todo sofrimento do mundo, que me olhava docemente prometendo compartilhar e me aliviar dos meus!

Resolutamente, iniciei a ida na direção das mulheres, quando tropecei novamente, na mesma pedra. Ao retomar o tino para a caminhada, estava no cenário anterior: taxistas, filas, ambulantes, o hospital ao lado. Desse dia em diante, algo mudou em mim. Não sei bem o que! Apenas tenho certeza que em qualquer braço dessa encruzilhada, qualquer, que eu tomar, elas me estarão esperando no final!

Respostas de 4

  1. A encruzilhada nos remete às nossas próprias aflições em frente ao inexorável, ao insólito, às escolhas, às realidades imponderáveis, que muitos experimentam e entretanto não encontra a métrica necessária para explicar, ou talvez seja apenas o pântano do nosso subconsciente que não apresenta cansaço quando o assunto minar nossa própria realidade! Mais uma vez meus parabéns!

  2. Foi que esta doença covarde fez com ele. Minou… o evento descrito em A encruzilhada remete exatamente ao que coube ao meu pai. Encruzilhada da vida. Lhe tirava força, ânimo, o sucumbia por mais que quisesse lutar…
    Estes foram os primeiros sintomas que sentiu quando descobriu o que tinha.

  3. O trajeto descrito foi quando estava caminhando e subindo a rua Saldanha Marinho, bairro da Liberdade, sentido à estrada que dá nome ao livro. Onde sentiu os primeiros sintomas de sua algoz.

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