Zeca Balacho era o típico mendigo. Minto, era um mendigo atípico.

Primeiro porque não pedia um cominho a ninguém, vivia às suas expensas, com o fruto de suas atividades, morava, sabe Deus onde, comia sabe-se lá o que, quando e onde, vestia-se com os andrajos que se via, e, invariavelmente, mostrava-se bem feliz.

Ora, como era de se esperar, tanta felicidade com tão pouco cabedal (como diria minha finada avó Linda) espicaçou a curiosidade dos muitos sem-que-fazer que mariposeavam ao derredor deste personagem e de tantos outros que povoam qualquer comunidade e quase sempre passam despercebidos ignorados.

Causava espanto em Zeca Balacho, além de inusitada dignidade, o trato com uma das partes de seu corpo: o rosto. Nunca se viu Zeca sem o rosto devidamente escanhoado, dentro dos mandamentos que ele não se cansava de alardear -“moço educado não diz palavrão, anda bem barbeado não cospe no chão”.

A cerveja ainda estava pela metade, quando Zeca se aproximou e pediu a latinha explicando que ele necessitava fazer isto por dois motivos: – “O primeiro, seu mestre (era assim que ele tratava a todos) é manter esta nossa linda mais limpa; o segundo, é que seu Badú do ferro velho me paga alguns trocados por cada quilo de latinha amassada, desde que seja de alumínio, como esta”. Sugeri que ele aguardasse um pouco, pois dali a alguns minutos seriam mais duas ou três latinhas, visto que outras pessoas recém tinham começado beber.

Zeca declinou o convite dizendo que ele não gostaria de incomodar os outros cidadãos e que só o fizera comigo porque vinha me observando há algum tempo, chegando à conclusão que eu era uma pessoa de muito bom trato, e que não se importaria de atendê-lo. Diante desta manifestação de apreço, resolvi satisfazer a minha curiosidade: – Zeca, perdoe-me, mas é impossível pra qualquer um que ponha os olhos em você ignorar esta expressão de felicidade e satisfação que você traz no rosto. Outras pessoas, aparentemente mais afortunadas que você, não demonstram isto. Qual é o seu segredo?

O mendigo baixou os olhos, olhou para os lados como para certifica-se que o que ia me contar seria ouvido apenas por mim e falou: “Seu mestre, alívio, vivia bebendo e infeliz até que, diz ele, encontrou a felicidade numa igreja. Agora dá gosto ver a sua cara de feliz! Só vendo, só vendo!” E antes que eu perguntasse, ajuntou: “Aqui eu, não foi religião… foi Valquiria. Quando Valquiria me olhou e deixou que eu chegasse perto dela, minha vida ficou mais bonita!” Como se adivinhando o que eu ia perguntar, ele continuou, com os olhos pregados num ponto abaixo da mesa:”Não, ela não sabe como eu ganho a vida. Me desgraço todo durante a semana, pra quando for Sábado, depois que ela deixa o emprego ( ela trabalha de doméstica em casa de família) me encontrar com ela. Aí, gasto tudo que ganhei na semana. Tenho uma muda de roupa e um sapato que eu só ponho nesses dias. Gasto tudo mesmo, já ganhei vintinho e voltei sem nenhum. Ela pensa que eu trabalho em uma firma fora da cidade, e por isso só posso vê-Ia de Sábado em Sábado. Ela tem planos pra vivermos juntos, mas morro de medo que ela descubra como eu vivo, os trapos que uso durante a semana.

Perguntei o que ele faria se esse dia chegasse.

“Eu pediria que ela me aceitasse assim, como sou de verdade”, disse, esperançoso e já com um toldo de tristeza a anuviar-lhe o semblante.

– E se ela não lhe aceitar, Zeca?

O homem levantou o rosto, deixou que seu olhar vagueasse tonto, perdido pelo espaço. Por algum instante pensei que choraria. De repente, levantou uns olhos firmes, determinados para mim e repondeu:

“- Aí, seu mestre, só me resta dar fim na vida”!

Ontem, em algum momento da noite, Zeca Balacho se enforcou na jaqueira do quintal de seu Firmino.

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