Encravada num pequeno vale, por onde se esgueira um rio sujo e estéril, a localidade de Massanju sofre seus estertores. As duas serras que formam o vale sufocam as brisas que vêm do litoral e penetram por uma passagem ao leste da cidade em determinadas épocas do ano. No verão, a temperatura sobe de tal jeito que vaporiza a água do rio e das lagoas. O humo da vaporização fica pairando acima da cidade, pois não há vento para deslocá-lo nem alcança altura suficiente para que a mudança de temperatura resulte em condensação e em chuva para refrescar o ambiente. O resultado disto é que a cidade tem um clima de eterno mormaço.
Num desses terríveis dias, saí buscando um lugar para tomar uma cerveja, mais por necessidade que por prazer. Todos os botecos que experimentava, estavam com a mesma atmosfera sufocante. Andei para os lados da desativada estação de trens. Buscava um clima melhor, pois esta ficava bem na boca da passagem do leste. Mas, era um sitiozinho miserável, com cocô de cavalo, de boi e porco esparçado por entre os decrépitos paralelepípedos, casebres de madeira, papelão, lonas e toda sorte de material oriundo de dejetos. Por ali vagavam cães vira-latas, porcos e galinhas “pés duros” e um rebanho impreciso de alcoolizados separados por uma linha imaginária de preconceito e repulsa. As faces luzidias e os tornozelos grossos em consequência de inchaços denunciavam e estigmatizavam estes indivíduos miseráveis. Miseráveis como a paisagem que os envolvia.
Escolhi entre os muitos botecos que há por ali o que me pareceu mais apresentável e menos sujo, e, sentei-me em uma das mesas de ferro oxidado com cadeiras vacilantes, disputando a borda do copo de cerveja com moscas de diversos tamanhos que já eram bem íntimas dos frequentadores. Só estávamos eu, e um sujeito atarracado, usando um surrado chapéu de palha com formas indefinidas, que se agarrava a um copo contendo uma bebida escura como se aquilo fosse salvar sua vida. Fiquei olhando-o de soslaio, tentando adivinhar a natureza daquela bebida. Não me parecia nenhuma que eu conhecia. O sujeito tampouco parecia estar com ganas de bebê-la. Em intervalos irregulares, levantava o copo à altura do nariz, dava uma boa cafungada, olhava-a através do vidro e depositava, lentamente, o copo no tampo da mesa. Repetiu aquilo tantas vezes, que seu movimento se tomou monótono e minha atenção foi desviada.
Ao tentar me servir de mais cerveja sem moscas, acabei derramando alguma na mesa. Olhei para o balcão em busca de alguém para enxugar a cerveja derramada e me dei conta que não havia ninguém ali. Levantei-me disposto a conseguir um pano, ou qualquer outra coisa para secar a mesa. Aproximei-me de uma portinhola que havia atrás do sujeito da bebida escura. Estiquei o pescoço, para alongar a vista para dentro do cômodo. Não vi pessoa alguma, mas, percebi um rumor de vozes em uníssono. Agucei a audição: “uumm, tressss, oooito”, parecia. O sujeito da bebida se levantou, olhou para mim com uns olhinhos embaçados, virou o copo de um só trago esvaziando-o e disse:
-“tão jogando!”. Ato contínuo entrou pela portinhola desaparecendo.
Fiquei ali por algum tempo, sozinho. Lá dentro, a cantilena não parava. “Seeeeis, quaaaatro”. De quando em vez um longo “uuuhhhh”, também em uníssono. Merda, onde estava o cara para me atender? Largou tudo e foi jogar? E que jogo era este? Resolvi entrar para verificar. Se eu não fosse bem-vindo, sempre tinha o pretexto que estava procurando pagar a conta.
Adentrei num recinto estranho. Não saberia dizer que tamanho era. Estava na penumbra e um facho de luz solar vinda de uma fresta nas tábuas do teto, incidia justamente num grupo de pessoas que estavam no que parecia ser o centro do ambiente. De pé ou sentados no chão de terra batida, alguns de cócoras, formavam um círculo e olhavam atentamente para o centro, onde estava disposta uma lona esfarrapada e encardida. Ninguém pareceu perceber minha presença. Estavam, agora, em silêncio. Fiquei observando, curioso. Entreolharam-se ligeiramente, e, de repente, um sujeito alto e esquelético bateu com a palma da mão virada para cima no centro da lona. Imediatamente, o grito coletivo: “seeete”. Um gordo imenso, que estava de cócoras quase em frente a mim, estirou o braço sobre a lona, girando a mão direita três vezes no ar. A turba gritou “doois”, e ficou por outro momento em silêncio.
Senti uma presença à minha esquerda. Era um baixinho banguela que eu já havia visto pelas ruas fazendo serviços de entrega num carrinho de mão. Ganhei um sorriso deserto de dentes. Aproximou-se, familiarmente: “Lulão tá jogando demais hoje! Não tá?”. Acenei com a cabeça que sim, embora não estivesse entendendo nada daquilo.
Outra vez, Lulão se movimentou. Enrolou a manga da camisa até a altura do antebraço e pôs os dois dedos, em forma de V invertido, tocando a lona. Novamente o grupo exclamou “nooove”. Aí, aconteceu algo que me deixou mais confuso ainda. Um outro sujeito, mais alto e mais esquelético, levantou-se, sacou o chapéu surrado que levava na cabeça atirando-o com alguma violência no centro da lona. Este gesto foi seguido de um alarido, que só depois de alguns segundos pude entender que diziam:
“perdeu, êêhh, perdeu!” Perdeu como? Era ele quem estava jogando? Não era aquele outro, de camisa rasgada nas axilas? O banguela disse que não, que era aquele outro, mesmo. E acrescentou: “Êta que ele tá lascado! Logo hoje que o doce de dona Honorina azedou!”
O sujeito do chapéu pôs-se a gritar com uma vozinha esganiçada de eunuco, enquanto a turba o agarrava pelos braços e pernas e o erguia do chão, forçando-o para os fundos do lugar. Abriram uma porta e saímos (porque a esta altura eu já me incorporara ao grupo, curioso para ver o desfecho daquilo) atravessando os trilhos de trem e chegando numa cancela destinhorada. Dois urubus que ali faziam pouso esvoaçaram-se pousando em seguida mais adiante, numa estrutura em forma de trave. Nem por um momento a turma deixava de gritar: “perdeu, perdeu, perdeu”.
Caminhamos rumo a uma casa que havia adiante.
Descrever, fidedignamente, tal casa, é impossível. Em uma espécie de alpendre, com uma cobertura de telhas que parecia iriam cair a qualquer momento, estavam empilhados desordenadamente toda espécie de tralha que eu já havia visto: selas danificadas, dois ou três jererés, um munzuá de tamanho diminuto, cordas de diversos tipos, grossuras e tamanhos, uma máquina de costurar novinha em folha. Chamou-me atenção uma pilha de caborés. Todos quebrados de alguma forma. A única coisa que parecia guardar algum ordenamento, era uma pilha de barris de madeira, que tapavam a janela escangalhada entre dois portais tortos de madeira.
De repente, percebi que a turba estava silenciosa. Estiquei o pescoço por sobre o pessoal. Uma cadeira, de espaldar alto e pernas incrivelmente finas sobressaiu no meu campo de visão, destacando-se de entre a tralha.
Senti uma pressão no meu ombro. O banguela estava com a mão esquerda lá, enquanto levava a mão direita à boca. Seu rosto refletia tensão. Seus olhinhos de míope me fitaram. Fez um leve maneio de cabeça em direção a casa: olhei para lá e percebi que uma pessoa acabara de sentar na cadeira. Tinha cabelos grisalhos, desgrenhados e de aparência suja, que terminavam como num coque num lugar impreciso entre a nuca e as costas. O rosto era incrivelmente rugoso. Sorria. Seu sorriso revelava duas fieiras de dentes de cor cinza. Do lugar de onde me encontrava, não soube precisar se era sujeira ou cor natural. A nova personagem alavancou-se do assento com incrível agilidade para uma figura que parecia tão decrépita. Levantou o braço esquerdo. Parecia uma garra, a mão que encimava o braço esquelético, descamado.
– Vocês merecem o que têm! Vocês jogaram ontem, ante ontem e hoje, novamente! Todos perdem! Todos perdem! Será que não vêm que nunca irão ganhar? Os que jogam, perdem! Prejudicam os que não jogam, que também perdem, por não saberem jogar!
Um acesso de tosse espasmódica injetou algum sangue na sua cara dando-lhe alguma cor, e dona Honorina levou alguns segundo até reatar no discurso.
… Sairão daqui e iram jogar novamente. Eu bem sei! Vocês já sabem. Tenho dito várias vezes. Direi novamente agora, e, infelizmente, sei que não será a última vez. Baixou o braço, que havia permanecido estendido até durante o acesso de tosse, colou o queixo no peito ossudo e balbuciou uma frase.
Não ouvi direito, porque além das pessoas voltarem à algazarra, o banguela apertou meu braço mais firmemente e exclamou bem alto: “vixe!” e incontinente fui arrastado para seguir o pessoal que voltava pelo mesmo caminho. Voltei a cabeça para trás. Estranhamente, a cadeira, dona Honorina e os urubus que haviam permanecido pousados na trave, não estavam mais lá. O lugar, que durante os últimos momentos parecia fazer sentido, voltara a ter a aparência caótica da minha primeira impressão.
A turba voltava célere para o recinto do jogo.
Chegamos, e cada um buscava a melhor colocação na plateia, que se formava em círculo, numa movimentação incessante e atabalhoada. Fiquei parado aguardando o desfecho. Nisso, o banguela que fora meu quase íntimo lá fora, ia passando ignorando minha presença. Agarrei-o pelo braço, gesto que foi respondido com leve tentativa de desvencilhar-se. Insisti, olhando-o fixamente no rosto. Uma curiosidade me incomodava. Puxei-o, quase abruptamente para mim. Eu tinha que perguntar! Não poderia sair dali sem saber. Afinal, o que foi que dona Honorina tinha dito? Quais palavras tão graves e importantes modificaram a postura, o semblante e até a voz dela?
Luizinho me olhou, soltou sua risada esganiçada e disse: “O que ela vem dizendo há mais de dez anos, sem que ninguém atine direito o que é”. Eu já não podia me conter: “Sim rapaz, diga, o que foi?”Ele levou a mão no peito, exibiu um ar contrito e disse: “em se tratando de principalmente, nada como tudo são histórias”.
Quando ele voltou a me fitar, deve ter ficado assustado com a minha expressão, pois se afastou instintivamente e encetou uma retirada rápida para a penumbra dos fundos. Quando me dei conta, estava dando voltas na cachola, tentando encontrar algum sentido naquilo tudo: no jogo, no comportamento das pessoas, e, agora, neste raio desta frase daquela personagem imaginável. Comecei a me sentir meio mareado.
Saí dali. O mais rápido que pude. Lá fora, o ar quente castigava, ainda. Ainda as moscas disputavam a borda e o conteúdo do meu copo, e já algumas haviam sucumbido na tentativa. Ainda não havia ninguém a quem eu pudesse pagar a bebida que comprei. Deixei algum dinheiro embaixo da garrafa e me apressei a voltar para o mormaço conhecido e contumaz. Antes que aquilo tudo começasse a fazer sentido.
Que incrível esse texto…! A riqueza de detalhes trazida para todos nós, normalmente, aos domingos, a cada conto, a cada experiência de sua vida, nos tornavam reféns de um silêncio observador que só era interrompido por uma gargalhada coletiva de sua plateia de filhos e sobrinhos-filhos; dada sua capacidade de resgatar detalhes de cada cena retratada em suas palavras, gestos e entonações combinadas. Diferentemente do que ocorria com sua plateia que se engalfinhava aos gritos para contar uma única estória da nossa convivência, onde aquele que falava mais alto conseguia dar “ares” de maior veracidade sobre os fatos narrados, quando nosso interlocutor pai falava, era dele toda atenção coletiva dos que o ouvia. Tamanha destreza em correlacionar e integrar palavras, muitas delas distantes do nosso vocabulário habitual, para evidenciar todo ambiente e todos esses personagens à sua volta, nos remete ao centro desse conto, como se no ambiente descrito estivéssemos. Mais ainda, ler esse conto até o fim nos faz “viajar” no tempo, nos permite aquele sorriso estardalhado de quando estávamos na plateia ouvindo-o, atentos a cada detalhe que o velho Argolão fazia questão de nos trazer, “polinizando-nos” de uma cultura que não víamos em sala de aula. Sobretudo, esse conto nos traz um afago aos nossos corações e à imensa dor que essa saudade dele nos proporciona, refletidas na emoção contida nos olhos de cada um de nós…! Enquanto contos como estes forem capazes de nos proporcionar tamanha emoção, sua memória sempre fará parte de nossas vidas…!
Onde quer que estejas, saiba que nosso amor por você será eterno…!
Abraço grande do filho de sempre,
Cádinhos.
Um conto bastante insólito! Mas aprendí aqui que seu fino trato com o vernáculo coloquial também se espelha no trato com as letras! Sinto orgulho deste primo que tantas vezes me tirou do lugar comum para viaja-lo em seus pensamentos e com destreza e maestria! Um conto lindo!
Meu pai era um homem que adora a vida. Adorava “bater perna” quando tinha tempo, para observar pessoas, vivenciar situações e mundos que só a humildade, ternura e o amor consegue lhe permitir. Massanju é um exemplo disso. Lá na cidade em que moramos e que hoje vive minha avó. A forma como descreve cada detalhe daquele lugar da estação… Sempre estará em meu coração suas descrições e narrativas de minha infância, adolescência, descobertas incríveis que corríamos para contar-lhe… o narrador de minha vida…
Saudade…