Os olhos de ocaso prematuro percorriam o teto de telha vã do único cômodo da casa. As réstias de luz solar que entravam pelos espaços das telhas mal acomodadas ingeriram nos pensamento que ela tentava banir da mente. Era manhã de sábado e o dia anterior foi da contumaz bebedeira que se iniciava entre amigos e amigas. Mas já fazia tempo que eles logo se retirariam. Iriam encontrar seus parceiros. Um vazio, então, a envolvia num abraço insidioso e contundente. As doses seguintes mal percebidas, mas necessárias, viriam uma atrás da outra. Bebia sentindo-se cada vez mais miserável e só. Alguma coisa a lembrava de parar. No limite da embriaguês controlada e do pileque. Pagava a conta, respirava fundo várias vezes e iniciava a volta para casa. Pelo caminho ia engolindo lágrimas e recalques. Em casa atirava-se na cama. Inútil se banhar. Não havia ninguém para reclamar do hálito ou de algum odor estranho. Então chorava baixinho, um choro alongado e soluçante, quase um bramido, sentindo o nascer e o verter de cada lágrima ao longo de seu rosto indo alcançar o pescoço elegante, e acabarem por aninhar-se no vão entre seus voluptuosos seios. Certo dia experimentou chorar alto. Bem alto. Os sons reverberaram estranhamente pelas paredes mal cuidadas, e retornaram como um eco fantasmagórico aos seus ouvidos, assustando-a. Naquele dia, tomou consciência da poderosa solidão que a acompanhava. Ninguém ouviu seus gemidos e, até as paredes de sua casa os devolveu. Transmutados em sons terríveis, arrepiantes, pavorosos. Assim, chorava bem baixinho com medo que a casa a ouvisse. Esperava brevemente, até que um dos anjos alcoólicos já conhecidos a envolvesse com suas viscosas asas de morcego e a levasse por sonhos, às vezes esquecidos, às vezes sobressaltados e às vezes eróticos. Se fosse estes últimos, acordaria no meio da noite com as mãos entre as pernas e iria banhar-se para se livrar dos fluidos resultantes dessa fruição.
A lassidão oriunda da ressaca que começava a se instalar no seu corpo serviu de cúmplice, e os pensamentos repelidos prosperaram. Volteou um pouco a cabeça. Ali estava o fogão decrépito onde a velha avó, a única mãe que conhecera, desdobrava-se para produzir três refeições diárias com o pouco material que dispunha.
– Vá até a casa de D. Santinha e peça pra ela mandar dois mamões verdes. Ela saía já sabendo qual seria o cardápio do dia: cortadinho de mamão verde com pequenos pedaços de carne seca. Bom! Gostava. Comia com sofreguidão, como sempre. Gostava! Igual quando a mãe servia um escaldado com verduras, onde a base era 200 gramas de bacalhau, compradas na “caderneta” da venda de seu Geraldo. Cada dia mais era preciso mais dinheiro para pagar a venda. Era ponto de honra: “Dívidas são dívidas. São para serem pagas”. As anotações na “caderneta” diminuíam, mas o valor a ser pago aumentava assustadoramente. A inflação corria todo o salário da aposentadoria do avô. A comida rareava, diminuía, mas não deixava de ser gostosa, cheirosa e apreciada. Mesmo estas, de pouca elaboração. O avô esperava a mesa ser posta, e a ordem da esposa: – Pode vir! Tacitamente, todos os presentes, ele, ela e seus tios tomavam lugar no espaço que sobrava. À mesa, sentavam os mais velhos. Todos comiam o que a velha lhes punha nos pratos. Por vezes, ficava observando de soslaio a família. O avô, cabelo e tez brancos. Ele era português, de Alfama, lhe disse um dia. A avó era negra, bem negra. Todos os filhos saíram com a pele clara, inclusive o do antigo patrão que ela já trazia no ventre por força, quando conheceu aquele portuguesinho que lhe disse: – Gostei de você. Venha comigo. Esse menino que você traz na barriga crescerá junto com os que fizermos juntos. Vou cuidar de você e você cuidará de mim. Dito e feito! Casaram-se, o menino nasceu, e fizeram mais cinco: quatro homens e uma mulher. Todos com as peles claras. Ela cuidava com carinho dele, e ele dela, com carinho e tesão.
Um dia, perguntou: – Mãe, porque eu não sou clara como meu pai? A senhora é preta, vô e branco. Todos os filhos deles são assim, claros. Porque eu sou preta se meu pai …? A avó interrompeu-a: – Isso não tem nada a ver com homem. Vem da mulher. Meus filhos saíram claros por que eu tenho a barriga limpa. Já sua mãe…. Daquele dia em diante, passou a nutrir um sentimento, misto de raiva e desprezo, pela mãe biológica que nem conhecia. Aquela preta de barriga suja a tinha condenado a viver presa dentro de uma pele preta! Aos dez anos já sabia muito bem o que significava isso. Primeiro o sofrimento, físico, quinzena. Seus fartos cabelos negros eram crespos e rebeldes. A avó consumia uma medida de óleo de rícino, misturada à babosa e óleo de coco para alisa-los a ferro quente. Chorava silenciosamente, mas se submetia. Era necessário ter os cabelos, pelo menos os cabelos, mais próximos aos das pessoas mais claras, brancas. O cheiro resultante desse ritual torturante ficou nas suas narinas, indelével. Às vezes em que tentava protestar, a mãe se afastava para olha-la nos olhos, aproximava lentamente o rosto do seu e, esfregando o indicador e o anular no seu braço, dizia: – já não chega, já não chega? Ainda quer o cabelo de nêgo também? Nesses momentos a voz da mãe tinha um tom estranho, uma rouquidão cavernosa que ela não reconhecia. Ficava assustada. A sensação da fricção dos dedos dela na sua pele permanecia por um longo tempo.
Uma réstia de luz entrava por uma brecha entre dois tijolos mal arrumados na parede. Isso lhe fez refletir: no tempo que a casa era de taipa, não havia essas intromissões solares. Lembrou, exatamente, quando parte da casa ruiu. Fora um inverno muito chuvoso. As paredes não resistiram, muito por conta da falta de manutenção, que resultara na deterioração progressiva do reboco exterior. Fixou o olhar no centro do vão onde a mãe ficou sentada, com as mãos na cabeça, olhando fixamente para os escombros ensopados, uma porção fora, outra dentro da casa. O avô se juntou a ela, naquela silenciosa e resignada apreciação. Um tempo depois, pôs a mão no ombro da velha e murmurou: – não se avexe. Consertaremos isso já, já! A mãe soltou um muxoxo. Todos sabiam que não seria assim, tão fácil. Já não havia mais barreiros disponíveis para refazer a tapera e tijolos custavam caro. Puxou um pouco o cobertor para sobre as pernas. Sentia então, como naquele dia, aquele friozinho cortante que entrava pelo espaço deixado pela queda da parede.
Adormeceu novamente. Acordou sentindo um cheiro conhecido. Parecia pastel sendo frito. Gostava de pastel. O cheiro carregou suas lembranças. Viu-se sentada num banquinho, perto da cozinha da casa de um colega. Fora convidada para um aniversário. Pela primeira vez alguém da escola a convidava para algo. A mãe alisou-lhe os cabelos a ferro e óleos e vestiu-lhe o vestido de festas. Antes de sair, as recomendações de sempre: recusar polidamente o que lhe oferecerem. Se tiverem intenção dar, realmente, oferecerão novamente. Aí pode aceitar. Nunca encarar ninguém e falar sempre em voz baixa. A gente tem que saber nosso lugar, arrematava esfregando o dedo indicador e anular no antebraço, naquele gesto conhecido e terrivelmente eficiente. Não a deixava esquecer. Não lhe era permitido esquecer! Chegou um pouco mais tarde, como a mãe lhe dissera que era da boa educação. O colega a recebeu até efusivamente, convidando-a para entrar. Foi apresentada à mãe: – Mãe, essa é Almejo, minha colega. A mulher, uma senhora gordota e alta, se curvou levemente e perguntou, entre curiosa e alarmada: – Como!! Que nome é esse, querida?! E, virando-se para o filho: – Você me arranja cada uma! Depois conversamos, tá! Percebeu a tensão entre os dois e arriscou uma rápida olhadela para a mulher. Sentiu um friozinho na barriga ao perceber por entre a pintura carregada das pálpebras e os cílios, aquele olhar que aprendera a reconhecer. Uma coisa distante, fria, indiferente, acachapante. Dava uma vontade de fugir, sair correndo sem olhar para trás. Voltar para casa. Abraçar as volumosas cadeiras da velha que tinha por mãe. Ela diria: “’xente menina, tá doida? Prá logo depois acarinhar brevemente seus fartos cabelos negros. Algo bem parecido como quando davam as horas das avemarias e ela estava em algum lugar minimamente distante de sua casa. Os sinos da igreja do bairro adjacente lembravam a urgência de voltar para casa. A frieza e a imperiosa barreira que percebia no olhar da mulher fê-la compreender que estava em território estranho, longe de casa. Urgia voltar!
– Venha, ordenou-lhe a mulher. Baixou a cabeça intimidada e temerosa e a seguiu. Na verdade seguiu a bunda portentosa e disforme que bamboleava grotescamente quase rente ao seu nariz. -Sente-se aqui, apontou-lhe um banquinho raquítico estacionado no ângulo final do corredor que percorreram, a um passo da cozinha. E ali ficou. Encaixada entre as duas paredes que formavam o ângulo. As bandejas de pastéis, canapés diversos e refrigerantes passavam acompanhadas daquele odor gostoso. Não houve sequer um oferecimento, aquele que ela teria que recusar. Lá, do outro lado do corredor, risos, vozes, ruídos de movimentos ligeiros. Decerto brincavam. Os sons estimulavam sua imaginação. Vontade de ir para lá, onde as brincadeiras estavam, mas não conseguia mover-se, sair do lugar que lhe fora imperiosamente destinado pela senhora. Não sabe quanto tempo depois, o vestido começou a encurtar, encurtar, encurtar. A luta para mantê-lo sobre os joelhos só era menor que a preocupação em não cair do banquinho, que, repentinamente, começou a crescer para cima e estreitar o assento. Olhava para baixo e via o chão verde musgo do aposento distanciar-se cada vez mais. A mãe do colega pareceu, de repente, à sua frente. Conseguiu balbuciar: – senhora, tenho que ir. Sem olha-la, a mulher voltou a cabeça para a sala e em voz alta – Meu filho a escurinha já vai! O colega respondeu algo, sem aparecer para a despedida, e ela seguiu a direção apontada pelo dedo em riste frente ao seu rosto. Ao passar pelo exíguo corredor, não pôde evitar ver sua imagem refletida em um espelho octogonal pendurado na parede, e odiou ainda mais a mãe biológica, – aquela preta de barriga suja!
Quando a mãe ia executar o ritual do alisamento capilar, tinha o cuidado de retirar a farda do colégio do aposento e estende-la fora, no varal. Isso evitava que ficasse impregnada com o cheiro de cabelos queimados, misturado ao de óleo de coco e rícino. Podia ver a farda estendida. Tremulando triunfal. O pai resolvera matricula-la num colégio particular recém-inaugurado no bairro de cima. Tinha treze anos e ainda não havia frequentado um curso fundamental regular. Aprendera as primeiras letras na escola que uma vizinha, dona Cabocla, mantinha na laje da casa. A professora encarregou-se de comunicar à sua mãe a facilidade de aprendizado e sua esperteza no trato com os estudos. Tais qualidades, decidira o pai, seriam mais bem exploradas nesse colégio que trombeteava pelos bairros a excelência “revolucionária” do seu método, orientada pelos ensinamentos de um conhecido educador suíço. Não era tão longe de casa. Assim mesmo foi contratada uma Kombi para transporta-la até lá. O pai não podia leva-la devido ao emprego e a mãe já não suportaria caminhar. Ir sozinha estava fora de questão. Dias atrás, o pai e a mãe conversaram sobre isto. Tentando economizar um pouco, o pai sugeriu que ela bem poderia ir a pé. Era perto!
– Você já reparou na sua filha?
– …
– Ela já está com 13 anos. Já botou peitos. A bunda começa a empinar e a cintura tá afinando. Ela é maior que as coleguinhas, não reparou? Parece ter mais idade. Daqui a pouco aparece alguém arrastando a asa pra ela….
No primeiro dia, quando o motorista da Kombi veio busca-la, usava uma saia quase dois palmos abaixo do joelho, a blusa abotoada até o pescoço (com a severa recomendação de nunca abrir mais que aquilo) e um incômodo sutiã que seria incorporado ao seu vestuário daquele dia em diante, definitivamente. Mas ia feliz, sentindo-se poderosa, flanando por entre as ruazinhas mal amanhadas, produtos da ocupação desordenada e ilegal tão comum por aqueles lados. Acenava para todos. Mesmo os desconhecidos ganhavam um alegre aceno. Quase eufórica. À medida que o transporte recolhia as outras crianças, o sorriso fenecia e o entusiasmo era substituído por uma leve melancolia. O primeiro a adentrar o furgão, um garoto de pele clara meio avermelhada e cabelos desalinhados, olhou-a rapidamente e sentou-se à sua frente contrariando sua expectativa e a lógica. Até fizera menção de ajeitar-se no assento, esperando que ele viesse sentar-se no mesmo assento que ela. Onde ele sentou, seria importunado pelos demais. Teriam que passar por sobre suas pernas para alcançar qualquer lugar nos assentos. Breve outro garoto. Um moreninho robusto e parecendo meio desleixado. Alongou o olhar até os fundos, deteve-se por alguns segundos quando a viu, para entrar alegremente em seguida e sentar-se ao lado do outro. Ela percebeu quando ele cutucou com o cotovelo o colega maneando a cabeça para trás, num típico gesto de indagação. Este deu de ombros por três vezes e iniciou um animado “papo” sobre futebol.
E foi assim o resto do itinerário. Entravam, olhavam-na, entreolhavam-se interrogativamente e buscavam assento. Os disponíveis na parte da frente estavam rareando. Ficando apertado. Ninguém para ocupar os três lugares no banco onde ela era a única ocupante. Nenhum lhe dirigiu uma só palavra. Nem mesmo aqueles que ela já tinha visto perambulando pelo bairro, davam sinais de reconhecê-la.
De repente, um raio irrompeu veículo adentro. A porta lateral se abriu e uma petulante cabeça loira assomou. Perscrutou rapidamente o interior e, dirigindo-se ironicamente ao garoto que ocupava o assento junto à porta e que olhava pra ela sem se mover, perguntou:
– Dá licença! Tenho que entrar, né?!
Almejo havia desviado o olhar para a direita, como era seu costume quando não queria encarar algo. Havia sentido a tensão no ar.
– Ei! Ajuda vai! Pedido reforçado por duas palmadinhas nos seus joelhos. Estava estendendo uma espécie de sacola e esperava que ela a tomasse. Almejo recolheu a sacola, mas a mão continuou estendida. A garota a olhava com dois olhos claros e havia,,,,,,,,,,, um pedido neles. Cingiu a mão estendida firmemente e puxou para dentro.
– Isso! Obrigada. Esse babaca podia ter facilitado as coisas. Não sei onde ele acha que eu poderia ir sentar – comentou em voz alta e sacudindo as roupas. O menino não disse absolutamente nada. Os outros soltaram risinhos nervosos, timidamente. Voltou-se para Almejo sorrindo: – E ai? Meu nome é Vêda. E o seu? Quando Almejo mencionou o nome, ela jogou a cabeça para trás num gesto onde havia harmonia e sedução, na combinação do movimento dos longos cabelos e o riso mais bonito que ela já havia escutado.
– Vixe! Almejo e Vêda. Um prato feito pros babacas! Se prepare querida. Riu novamente e Almejo soube que ela seria sua amiga para sempre.
Manchuria / Liberdade! Mas que título! É um relato preciso da nossa condição social, desde a verticalidade do preconceito onde as práticas hediondas de racismo com eugenia encontrava terreno fértil no seio da família até a manifestação do seu contrário que acontecia e acontece ainda hoje, no espaço da escola ou espaço correlato a esta, onde a cor negra encontra seu necessário e justo valor estético, além de princípios morais que constroem a horizontalidade do valor humano!
Mandchuria seria seu livro. Não foi finalizado porque, como disse meu irmão Uyrá, uma doença covarde o tirou de cena sem encará-lo de frente, de punho fechados e de igual pra igual. Era seu grande sonho escrever livros, e este, com certeza, seria sua grande obra baseado sim, eu sei, em fatos reais. Infelizmente ficou inacabado.